INDÚSTRIA DA CULTURA, ESNOBISMO E VANGUARDA:

OS NOVOS AVATARES DA COMPOSIÇÃO MUSICAL CONTEMPORÂNEA (UM ENCONTRO TRANSDISCIPLINAR)

ARGUMENTO

Tendo em vista que a “lógica comercial ameaça toda produção independente, e que a concorrência, longe de diversificar, homogeneíza, e que a busca do produto omnibus – que tende a difundir, de preferência no mesmo instante, o mesmo tipo de produto, visando lucro máximo e custo mínimo, a difusão comandando a produção” (BOURDIEU, 2001, p.77-78) –, vemos que, para a indústria da cultura, a criação independente tem pouca ou nenhuma importância; o esnobismo das salas de concerto impede a circulação de certas obras contemporâneas; e a hegemonia dos dogmas da autoproclamada vanguarda não abre espaços para um trabalho criativo não-alinhado.

Como dizem Georgina Born e David Hesmondalgh, “após a segunda guerra mundial, sob a influência substancial dos escritos pedagógicos de Schoenberg, foi a linhagem serialista do modernismo musical que se tornou dominante nas instituições e no ensino da música nova. Os experimentos dos primeiros modernistas (...) com suas representações de outros – fossem exóticos, nacionalistas ou populistas – deram lugar a um formalismo cada vez mais abstrato, cientificista e racionalista baseado na negação total ou parcial da tonalidade (BORN & HESMONDALGH, 2000, p.15). A estética de Adorno, buscando fundar uma filosofia da música contemporânea, constrói uma ética política que rejeita a intrusão, na música, das lógicas comerciais, tornando-se assim muito severo com as práticas musicais comerciais, levando às vezes à confusão os leitores que buscavam na Escola de Frankfurt uma filosofia emancipadora que acompanhasse a evolução de seu gosto musical (FRANCFORT, 2008).

Como “experiência de multidão, relativamente nova na história” (GULLAR, 1978, p.114), é preciso identificar na cultura de massa "qual a ação cultural possível que permita aos meios de massa transmitir valores culturais" (ECO, 2004, p. 50). Se “a arte aristocrática do passado correspondia a uma sociedade de baixo consumo”, até que ponto devemos justificar a qualquer preço, a permanência de uma visão estética aristocrática dentro da sociedade de massas? (GULLAR, 1978, pp.115 e 106-107).

Para Tia DeNora, “em Adorno, a indústria da cultura é muito rapidamente considerada como uma força monolítica, rejeitando a priori seus produtos como indiferenciados e igualmente sem valor. (...) Essa projeção cegou Adorno para a heterogeneidade presente nos vários enclaves daquilo a que se referiu, talvez simplisticamente, como ‘a indústria da música’ – setores de médio alcance, redes, indivíduos, grupos, e rivalidades através das quais ocorriam a produção. Para citar apenas um exemplo, o aparato conceitual de Adorno não lhe permite considerar como a indústria de gravação era multifacetada, composta de uma mistura de pequenas e independentes companhias e grandes conglomerados, e como a interação entre esses setores teriam implicações no tipo de obra produzida (DeNORA, 2003, p.23).

A música erudita contemporânea floresceu sob a proteção estatal do mercado assistido (cf. MENGER, 2001, 2002 e 2009) e da academia, e às vezes também na indústria de entretenimento (como nas trilhas de filmes de terror...). Não é errado dizer que a indústria da música reposicionou os clássicos em um nicho maior e altamente lucrativo na cultura consumista contemporânea; o que nos leva a concluir que não é a música clássica que está em crise, mas a maneira de pensá-la (COOK, 1998, p.).

A pluralidade de re-apropriações através de tempos, lugares, gêneros e estilos a que as músicas hoje estão expostas sugere que seu valor estético não está dissociado de seu valor simbólico. Sem qualquer reducionismo sociológico, muito menos tentando descartar uma suposta "aura" da obra musical, vê-se que as ações e estratégias individuais dos compositores contemporâneos inserem-se na luta social por representação e classificação na prática coletiva, no mercado reputacional e na pirâmide de notoriedade (MENGER, 2002).

Apesar de termos consciência dessa pluralidade, cada tipo de música vem junto com sua própria maneira de pensá-la, como se só existisse uma maneira de pensá-la e só um tipo de música para ser pensado. Essa tradição vem dos estudos acadêmicos do século XIX europeu e reflete o estado da música naquele século, criando assim uma falta de sintonia entre as músicas e como as pensamos. Longe de ser algo que simplesmente acontece, música é aquela que fazemos e o que fazemos dela; lembrando que qualquer abordagem musicológica deva se ocupar de texto e de contexto, sem esquecer que “escrever sobre música é como dançar sobre arquitetura” (COOK, 1998, p.vii-x).

Do ponto de vista de um país "emergente" como o Brasil, uma das consequências de qualquer processo de colonização é o surgimento, nas colônias, de uma classe dominante consular cuja característica, entre outras, é o esnobismo cultural. Esse esnobismo é expresso principalmente nas escolhas culturais fora do contexto, ignorando as manifestações locais, ou incluindo-as no conjunto das estratégias de urgência em participar de um suposto universalismo cultural metropolitano.

Uma crítica à indústria da cultura, aos esnobismos e aos dogmas da vanguarda encontra seu primeiro obstáculo em seus próprios campos, devido à recusa de seus atores em promover uma reflexão crítica que venha questionar privilégios, interesses imediatos de dominação e vantagens nem sempre apenas simbólicas.

O Departamento de Música da USP de Ribeirão Preto e o Núcleo de Pesquisa em Ciências da Performance (NAP-CIPEM) convidam compositores, intérpretes e pesquisadores das mais diferentes áreas do conhecimento, nos dias 16, 17 e 18 de outubro de 2014, no campus de Ribeirão Preto (SP), para discutirem juntos sobre os espaços musicais de criação, circulação e recepção, visando uma contribuição transdisciplinar que aponte para uma renovação da criação musical contemporânea, já que a indústria da cultura, os esnobismos e a vanguarda histórica é que têm sido o pano de fundo para as "transformações durante sua breve existência" (STRAVINSKY, 1940).



REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Contre-feux. Paris, Éditions Raisons d’Agir, 2001

BORN, Georgina e HESMONDALGH, David. Western music and its others. Los Angeles, University of California Press, 2000

FRANCFORT, Didier. « La musique savante manque à notre désir » (Rimbaud, Illuminations) Musiques populaires et musiques savantes : une distinction inopérante? [document de travail, diffusion restreinte]. Comunication présentée au Colloque fondateur de l'International Society for Cultural History à Gand (Gent, Belgique) en août 2008. http://www.abdn.ac.uk/isch/

GULLAR, Ferreira. Vanguarda e subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1978

ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6ª ed. São Paulo, Ed. Perspectiva, 2004

DENORA, Tia. After Adorno. Rethinking Music Sociology. Cambridge, Cambridge University Press 2003

MENGER, Pierre-Michel. Le paradoxe du musicien. Le compositeur, le mélomane et l’État dans la societé contemporaine. Paris, L’Harmattan, 2001

MENGER, Pierre-Michel. Le travail créateur. S’accomplir dans l’incertain. Paris, Seuil/ Gallimard, 2009

MENGER, Pierre-Michel. Portrait de l’artiste en travailleur. Métamorphoses du capitalisme. Paris, Éditions du Seuil et La République des Idées, 2002

COOK, Nicholas. Music: A Very Short Introduction. New York, Oxford University Press Inc., 1998

STRAVINSKY, Igor. Poetics of music. Cambridge, Harvard Press University, 1970

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