Violência de Gênero: representações e práticas sociais  de mulheres brasileras vitimizadas.

                                   Sergio Kodato[1], Hilda Maria Gaspar Pereira[2], Thaisa Belloube Borin[3] Felipe Watarai[4]

Essa pesquisa refere-se à mulher brasileira, vítima de violência doméstica, suas representações do fenômeno, que legitimam as práticas sociais decorrentes. Metodologicamente foram realizadas entrevistas focais com mulheres que buscaram a Delegacia de Defesa da Mulher, para registro de ocorrência de violência ou procura por assistência social e psicológica.

Abstract

This research refers to the Brazilian female domestic abuse victims' psychological and social characteristics and their self-support representation mechanism to deal with the problem of violence. Victims’ interviews at the Women`s Police Station showed the legitimization of social practices utilized by the victims to deal with the violence. To debate and to contribute on psychological and social strategies that not only increase the phenomenon visibility but also help victims to break the violence circle with the aggressor.  

1. Introdução

A violência contra a mulher é um preocupante fato social sendo apontada pela Anistia Internacional, como um dos graves problemas de Direitos Humanos no Brasil Violência de gênero, define-se como qualquer ato de agressão baseado na diferença de gênero, que resulte em sofrimento, dano físico, sexual e/ou psicológico (Nações Unidas, 1992).

Segundo Buckley (2000), essa é a violência que mais se espalha pelo mundo, sem circunstâncias definidas, sem distinção de classe econômica, idade e raça. E concomitante a isso, existe ainda o medo da mulher de denunciar o agressor o que a impede de se proteger dele, fechando o ciclo da violência impune e intermitente.

A violência física doméstica é duas vezes maior para a mulher do que para o homem (32% para 10%), além de sinalizar uma intensa cronificação da violência de gênero, em número significativo de casos. Na faixa etária de 18 a 29 anos, o espancamento é acintosamente freqüente. As estatísticas revelam que os conhecidos são mais perigosos que os estranhos e a mulher é a vítima preferida dos agressores familiares, além de ser justamente a agressão que recebe menos atenção da sociedade (Saffioti, 1994).

Em 1995, O U.S. Merit Systems Protection Board estimou um custo dos abusos sexuais para o governo dos Estados Unidos da ordem de 327 milhões de dólares, ao longo de dois anos quando o estudo foi feito (1992 a 1994), apenas em transferências de empregos, licenças médicas e níveis de produção individual e grupal (Miller & Cohen, 2003).

No Canadá, grupo significativo de mulheres é agredido por seus parceiros, em média 35 vezes antes de recorrerem à polícia; mais de metade das mulheres que foram assassinadas pelos seus parceiros já haviam prestado queixa de violência à polícia, sendo que nada foi feito; todo ano mais de 90.000 mulheres e crianças canadenses são admitidas em abrigos destinados a mulheres violentadas (Colleman, 1999).

As políticas públicas e serviços de atendimento às mulheres em situação de violência como abrigos, Delegacias de Defesa da Mulher, Organizações Não Governamentais - ONGs, começaram a ser implantados no Brasil, em decorrência das pressões desenvolvidas pelos movimentos feministas no mundo e no país a partir dos anos 70. Cria-se, então, no município de São Paulo, a primeira Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) em 1985 e a primeira casa abrigo (COMVIDA), em 1986 (Rousche 2005).

Posteriormente as Delegacias de Defesa da Mulher e casas-abrigo disseminaram-se por todo o país, onde relevantes estudos são realizados para o aprimoramento dos atendimentos às vítimas e atualização dos dados da situação de violência no país.

Saffiotti (1998), buscou traçar um panorama da violência doméstica no Brasil, a partir do estudo de 170 mil boletins de ocorrência registrados em todas as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) de 22 capitais. Os resultados mostram que 81,5% dos casos referem-se a lesões corporais dolosas; metade das mulheres tem entre 30 e 40 anos e 30% têm entre 20 e 30 anos; em 50% dos casos, o casal tem entre 10 e 20 anos de convivência, e em 40%, entre um e dez anos, e que depois da queixa, 60% dos casais permanecem juntos.

Vale notar que as Delegacias de Defesa da Mulher significam um avanço importante da sociedade, não apenas enquanto conquista de um espaço para tornar visível o fenômeno da violência no país, mas principalmente, pela possibilidade dessas mulheres serem atendidas por advogados, psicólogos, assistentes sociais e de obterem informações e orientações para que tenham melhores condições de buscar soluções adequadas para seus problemas.

O´neil ( 1997), considera a violência doméstica nos Estados Unidos como a maior ameaça à saúde da mulher. O pesquisador acredita que ao invés de se pensar a causa focada nas questões individuais masculinas, ou seja, do agressor, deve-se ter em mente um modelo multifatorial que divide em quatro áreas: 1) explicação macro-social, cultura de dominância masculina. 2) explicação biológica do ser humano, instinto e impulso agressivo. 3) explicação dos papéis sociais de gênero. 4) explanação da relação entre os gêneros.

Gondolf (1997), que discute a diferença de gêneros na Rússia e sua relação com homicídios de esposas no país, também acredita em um modelo multifatorial com o qual associa os homicídios de mulheres cometidos por parceiros. O autor define tal modelo através dos seguintes fatores: alto nível de desorganização social, normalização e banalização da violência e desigualdade entre os gêneros.

Stover (2005), da Yale University Child Study Center, acredita que os primeiros estudos sobre a violência de gênero ajudaram no entendimento da natureza do agressor, do ciclo da violência e nas conseqüências disso para as crianças que convivem com o problema. Porém, mais recentemente os estudos estão sendo focados na evolução das intervenções realizadas pelos profissionais da saúde e seus efeitos nos casos reincidentes.

Barnett (1997) concluiu através de seu estudo sobre o controle e a autodefesa, na agressão entre parceiros, que o aspecto motivador do comportamento agressivo masculino é o desejo de controlar a mulher, que por sua vez, agride o homem para se defender. Os homens entrevistados na pesquisa relataram amedrontar suas parceiras mais freqüentemente, além de serem mais preocupados em controlá-las.

Para Hamberger (1997), as motivações do uso da violência se relacionam com a dominação e o controle. Isso inclui controle físico, punição por um comportamento da mulher reprovado por eles, imposição e coerção emocional.

De acordo com Arendt (1973), “[...] os indivíduos recorrem à violência só quando vêem sua capacidade de poder declinando e o controle sobre o outro escapando às mãos” (p.34). O marido recorre à violência quando está perdendo o poder sobre a mulher e os filhos.

Freud (1969), por sua vez, chega a afirmar que tanto a violência bruta quanto a apoiada no intelecto possuem estreita relação com o exercício do poder. E para Romanelli (1997), o poder supõe imposição, permite o uso da força e da violência, sejam essas físicas ou simbólicas.

Pensa-se que o estudo das relações de poder estabelecidas pode fornecer elementos significativos para se entender como elas se organizam e quais os reflexos disso, principalmente, com relação às diferenças de gênero.

Shepard (2005), acredita que nos últimos vinte anos grandes progressos foram alcançados nas estratégias de combate à violência contra a mulher e que as reformas institucionais tiveram um importante impacto positivo nesse processo.

Diante desse momento social transitório, referente às delimitações de papéis sociais e funções de gênero na família, percebe-se que a mulher encontra-se muitas vezes em posição ambígua, pois há algumas décadas atrás o ideal de mulher era a submissa, dependente, pura e casta. Pode-se dizer que ela não apreendeu plenamente o significado de sua função e de seu papel na sociedade, onde ainda vigoram pensamentos e preconceitos machistas arraigados desde os séculos passados. E então permite, de certa forma, ser agredida das mais variadas maneiras pelo homem com o qual convive.

Nesse sentido que o objetivo da presente pesquisa se coloca, ao tentar entender, fundamentando-se na teoria das Representações Sociais elaborada por Moscovici (1961), como a mulher vítima de violência representa o poder. Supõe-se que as representações de poder, relacionadas à figura masculina influenciem sua atitude com relação ao parceiro e a violência sofrida.

2. Justificativa

O presente estudo sustenta-se nos atendimentos psicológicos realizados às mulheres vítimas de violência doméstica e aos plantões de apoio e acolhimento realizados por estagiários do curso de Psicologia da FFCLRP-USP e por pesquisas de alunos da pós-graduação, na Delegacia de Defesa da Mulher - DDM, localizados na cidade de Ribeirão Preto, município de 500.000 habitantes do interior do Brazil.

Constatou-se nesses atendimentos, o sofrimento físico e psíquico das mulheres que vivem com parceiros e/ou familiares caracterizados como agressores em potencial, ou seja, que a qualquer momento são capazes de violentar a mulher de forma física, verbal, psíquica e/ou sexualmente.

Em geral, essas mulheres apresentam depressão, ideação suicida, obesidade mórbida, ausência de desejo sexual, fobias diversas, uso de medicação controlada e, algumas, dependência de drogas e configurando-se muitos casos da síndrome de estresse pós-traumático. Assim, a motivação para a realização desse estudo foi o fato de que muitas dessas mulheres suportam a violência cotidiana e degradante durante anos sem qualquer reação efetiva ou explícita.

Essa problemática a ser enfrentada pela presente pesquisa pode ser articulada num contexto maior, quando Buckley (2000), afirma que em todo o mundo, pelo menos uma em cada três mulheres, é agredida física verbal e psicologicamente, coagida ao sexo, ou submetida a qualquer outro tipo de abuso durante sua vida.

No Brasil, uma pesquisa realizada em 2001, pelo Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo, que entrevistou 2.500 mulheres sobre diversos aspectos, aponta os seguintes dados: cerca de uma em cada cinco brasileiras (19%) declara espontaneamente ter sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem; porém, quando estimuladas a pensar diferentes formas de agressão, nas respostas o índice de violência de gênero ultrapassava o dobro, alcançando a marca de 43%.

Um terço dessas mulheres (33%) admite já ter sido vítima, em algum momento de sua vida, de alguma forma de violência física, 13% de estupro conjugal ou abuso e 27% sofreram violências psíquicas. Uma projeção das taxas de agressões (11%) para o universo investigado (61,5 milhões) indica que pelo menos 6,8 milhões dentre as brasileiras vivas já foram espancadas ao menos uma vez. Considerando-se que entre as que admitiram terem sido espancadas, 31% declararam que a última vez em que isso ocorreu foi no período dos 12 meses anteriores, projeta-se então cerca de, no mínimo, 2,1 milhões de mulheres espancadas por ano no país, 175 mil/mês, 5,8 mil/dia, 243/hora ou 4/minuto – uma a cada 15 segundos.

A responsabilidade do marido ou parceiro como principal agressor varia entre 53% (ameaça à integridade física com armas) e 70% das ocorrências de violência em qualquer das modalidades investigadas (física, psicologia, sexual). Os casos de denúncia pública são raros, ocorrendo principalmente diante de ameaça à integridade física por armas de fogo (31%), espancamento com marcas, fraturas ou cortes (21%) e ameaças de espancamento à própria mulher ou aos filhos (19%). O órgão público mais utilizado para denúncias é a delegacia de polícia. A Delegacia da Mulher é mais utilizada nos casos de espancamento com marcas, fraturas ou cortes, mas ainda assim, infelizmente, por um pequeno índice de mulheres (5%).

Na pesquisa de Day e col (2003) afirma-se que, na maioria dos casos, as seqüelas físicas são: machucados na cabeça, hematomas e fraturas. E os psicológicos são ansiedade, depressão, ideação suicida e automutilação.

Sendo assim, a falta de reação da mulher nas situações de violência pode estar vinculada com suas representações de poder. Portanto, se ela suporta durante 10, 15, 20 anos a violência sofrida, essas representações podem estar legitimando e naturalizando esses episódios.

Com isso, o objetivo deste estudo é proporcionar novas reflexões e perspectivas de investigação no campo da Psicologia Social, da mulher e da violência de gênero, a fim de que novos paradigmas sobre as representações de poder sejam construídos e analisados para um melhor entendimento dos aspectos que corroboram a ocorrência desse tipo de violência.

3. Objetivos

Compreender as representações de poder que as mulheres vítimas constituem e produzem nas relações que estabelecem com seus parceiros. Realizar uma caracterização de aspectos psicológicos e sociais das mulheres que prestam queixa na DDM e averiguar quais são suas expectativas com relação a esse fato.

Investigar a história de vida da mulher e de agressões sofridas na infância, adolescência e vida adulta. Entender como a mulher vitimizada relaciona-se com a figura masculina e porque suporta a agressão durante longo período de tempo.

4. Metodologia

Segundo Moscovici (2003), as representações sociais constituem um sistema de valores, idéias e práticas que fornecem aos indivíduos um código para nomear e classificar os vários aspectos de seu mundo. Para Jodelet (1989) as representações são formas de conhecimento prático conectando um sujeito a um objeto. Já Farr (1998), afirma que elas são formas de conhecimento produzidas e sustentadas por grupos sociais específicos, numa determinada conjuntura histórica.

Elegeu-se como método da presente pesquisa a Teoria das Representações Sociais, pois é a partir delas que o sujeito constrói aquilo que torna possível aproximar-se de seu mundo interno, do modo como ele significa os objetos ao seu redor e que sentidos atribui às suas vivências. E como o objetivo da pesquisa é o de conhecer o mundo emocional e social das mulheres vítimas e como elas entendem o poder privilegiou-se tal método,como uma investigação, uma incursão no imaginário social da violência contra a mulher.

No caso da presente investigação, articular-se-á a análise do contexto institucional e a entrevista como forma de acesso aos repertórios interpretativos. A opção pela pesquisa qualitativa e a complexidade do fenômeno exigem certa perseverança e diversidade metodológica, desde que se observem as condições de produção e o material espontâneo que emerge na dinâmica de interações.

4.1 Participantes e local

A pesquisa foi desenvolvida na Delegacia de Defesa da Mulher da cidade de Ribeirão Preto, localizada na região central da mesma. A escolha dessa instituição deve-se ao projeto de prevenção de violência doméstica que se mobiliza através de plantões psicológicos realizados nessa, por estagiários do curso de psicologia e pós-graduandos, membros do GRUPO GEAVIDAS (Grupo de Estudos e Atenção à Violência Doméstica e Agressão Sexual) – HC - FMRP-USP.

Esse grupo é responsável pela iniciativa em desenvolver essa atividade com os objetivos de acolhimento e orientação às mulheres que prestam queixa na Delegacia da Mulher, diariamente, dos diversos tipos de violência sofrida.

O grupo de pesquisa elegeu para participar do estudo, dez mulheres dentre aquelas que foram encaminhadas para o plantão psicológico após terem prestado queixa. Procurou-se constituir os sujeitos da pesquisa variando-se a escolha dos mesmos no tocante à etnia, faixa etária, nível sócio-econômico, grau de instrução, tempo e gravidade da agressão sofrida.

 O projeto de pesquisa foi aprovado pela Delegacia de Defesa da Mulher e para as mulheres que compareciam à delegacia, com o objetivo de sensibilizá-las e motivá-las a participarem da pesquisa. Obtida uma resposta positiva dos sujeitos e a carta de consentimento assinada, foi realizada a coleta de dados. 5. Aspectos Éticos

O projeto foi submetido ao Comitê de Ética da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras e o número do protocolo é 0008.0.222.000-05.

4.2 Instrumentos para Coleta de Dados

A pesquisa envolveu instrumentos distintos para cada etapa da coleta de dados:

*Observação participante da dinâmica institucional (DDM); Foram realizadas quatro horas semanais de observação participante, na Delegacia de Defesa da Mulher, durante o período letivo de 2004. Um diário de campo foi elaborado sobre as observações e impressões da instituição percebidas pelos pesquisadores.

*Entrevistas individuais semi-estruturadas em profundidade, gravadas e transcritas na íntegra, baseadas na história de vida, nos episódios de violência sofrida, na relação com o agressor e com a família. Foi utilizado um gravador para registrar as entrevistas, fitas cassetes.

5. Resultados

5.1 Descrição da Instituição

            No ano de 1.986, o governador do estado promulgou o Decreto n.º 24.669, de 30 de janeiro de 1.986, criando a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher no município de Ribeirão Preto, São José dos Campos e Limeira. Inicialmente, cabia a DDM a investigação e apuração dos delitos contra a pessoa do sexo feminino, previstos na Parte Especial, Título I, Capítulos II e VI, Seção I, e Título VI do Código Penal Brasileiro, de autoria conhecida, incerta ou não sabida, ocorrida na área circunscricional.

            O Decreto n.º 42.082, de 12 de agosto de 1.997, alterando o Decreto n.º 40.693, de 1º de março de 1.996, estabeleceu à DDM as seguintes atribuições:

1 - investigação e apuração dos delitos contra a pessoa do sexo feminino, a criança e o adolescente, previstos no Título I, Capítulos I, II, III e V e Seções I, II do Capítulo VI, nos artigos 163 e 173 do Título II, nos Títulos VI e VII, e no artigo 305 do Título X, todos da Parte Especial do Código Penal, e os crimes previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90);

2 - atendimento de pessoas do sexo feminino, crianças e adolescentes que procurem auxílio e orientação, e seu encaminhamento aos órgãos competentes;

3 - cumprimento dos mandados de prisão civil por dívida do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia.

            No tocante aos artigos 121 e 163 do Código Penal (homicídio e dano, respectivamente), a competência se restringe às ocorrências havidas no âmbito doméstico e de autoria conhecida. No Estado de São Paulo foram instituídas 125 DDMs; na capital Paulista, são 29; e em todo o Brasil, são aproximadamente 400.

            No ano transcorrido, a Delegacia de Polícia de Defesa da Mulher registrou mais de 4.000 ocorrências. Mensalmente, são registradas cerca de 350 ocorrências; não obstante, no mesmo período, atende, orienta e encaminha cerca de 400 pessoas cujo caso não seja de lavratura de ocorrência. Isso ocorre num município de 37.6 homicídios para cada 100.000 habitantes por ano, índices alarmantes de furtos de carros e assaltos à residências, penitenciárias e unidades da FEBEM super-lotadas, um intenso tráfico de drogas e uma elite, que cultua a cultura do álcool e do rodeio de animais, configurando um contexto social e econômico de brutal desigualdade de renda, propulsor da criminalidade.

            Apesar da relevância dos serviços prestados, a delegacia apresenta deficiências em seu espaço físico, quadro funcional, recursos tecnológicos, etc. Atualmente, exercem suas funções na DDM de Ribeirão Preto uma Delegada de Polícia Titular, três Escrivãs de Polícia, três Investigadoras de Polícia, uma agente penitenciária, e um Agente Policial. Em relação à demanda, a infra-estrutura material e de recursos humanos é extremamente insuficiente.

             

             A coleta de dados foi realizada nessa delegacia, no ano de 2.004, quando registrou 42.306 ocorrências, indicando um aumento de 27,3% em relação ao ano anterior, indicando índices crescentes de violência contra a mulher no município.           

            Foram atendidos pela equipe de pesquisa, 166 casos em regime de plantão de assistência psicológica, através da técnica de entrevista dirigida. Como resultado pode-se afirmar que 57% das queixas referem-se a lesões corporais dolosas graves; 15% de adolescentes e crianças que são vítimas de violência familiar; 8% de estupros e atentados violentos ao pudor; 12% de ameaças de morte, abandono e separação; 8% de outras ocorrências e queixas, como quadros patológicos de síndrome paranóide.

            Quanto aos casos de lesões corporais (57%), a história clínica indica um processo de agressão sistemática e persistente; o alcoolismo do parceiro agressor; a resignação da vítima; culminando com a ameaça de morte e ideação suicida. O que acaba afetando negativamente a auto-estima e saúde mental.

            O agravamento da crise social e econômica, por outro lado leva a vitimização crescente (15%) de crianças e adolescentes, através da rejeição, abandono, maus tratos e abuso. Se a associação de casos de homens violentos, alcoólatras, com estupro e abuso sexual já faz parte do cenário da violência familiar no Brasil; foi surpreendente a quantidade de casos de mães buscando abandonar suas filhas adolescentes (14 a 17 anos), ou seja disponibilizá-las ao conselho tutela por “conduta moral duvidosa sexualidade promíscua precoce”.

            Os casos de mulheres que procuram a delegacia para queixas de “perseguição” indicaram em 8% dos casos, sintomas de síndrome paranóide e delírio persecutório que denunciam que o sofrimento atroz cotidiano e insuportável desencadeia estados paranóides e surtos psicóticos. Quando os ofensores foram convidados a comparecerem a delegacia para se explicarem com relação às queixas das vítimas, perceberam-se indícios de que a intervenção de um agente externo investido de autoridade, arrefece ao menos durante um período curto de tempo (semanas) o comportamento violento.

5.2 Análise das Entrevistas

            A análise do discurso foi processada através do método de associação de idéias, sistematizado por Jovchelovicth (1990) e Guareschi (2002). Os tópicos incentivados nas entrevistas foram: o feminino, em sua história de vida; a dinâmica familiar, e a constituição do objeto; a auto-imagem corporal e a sexualidade; a figura masculina e os episódios de agressão.

            De acordo com as unidades de significado recorrentes em seus sentidos e funções simbólicas, foram elaboradas categorias temáticas:

a)      violência e alcoolismo

            70% das mulheres relatam que seus companheiros bebem e que são agressivos:

“Meu marido bebia e perdeu tudo o que tinha”.

“[...] chegava em casa bêbado, arrebentava a porta, era agressivo [...]”.

“Meu marido bebe, usa drogas, não gosta de trabalhar [...]”.

“[...] ficamos sem nada, sem dinheiro para comer [...]”.

           A associação do alcoolismo com violência doméstica mostra que as bebidas alcoólicas e as drogas são fatores desencadeantes e agravantes do fenômeno.

b) história traumática

            70% relatam história pregressa de violência e trauma:

“[...] ele cresceu vendo o pai querer se matar 24 horas por dia [...]”.

“[...]  não tem amor da família dele e não consegue sentir amor pelas pessoas”.

“[...] meu pai bebia e batia na gente [...]

“Sou menina de orfanato, tenho uma carência, sofro falta de família [...]

“Fiquei dois anos envolvida com prostituição, [...]”

            A história da vítima inicia-se com um pai rígido, severo ou ausente e se reproduz na figura de um parceiro com as mesmas características.

c) exploração e opressão

            60% relataram sentimentos de opressão e dependência:

“Me sinto uma empregada doméstica dos meus filhos”.

 “[...] era muita vigilância dele em cima de mim. Antes em casa o clima era pesado, as crianças tinham medo do pai, elas viviam tensas

“[...] ele me forçava a fazer coisas que eu não queria [...] sabe [...] ficava na boca, por trás, eu apanhava se não quisesse fazer, ele falava que ia procurar outra [...]”.

            O poder do parceiro é representado como inexorável e perverso.

d) sexualidade, desejo e perversão

            50% relataram cenas de crueldade e perversidade:

“Já peguei meu marido olhando minha irmã tomando banho [...]”.

“A partir da menopausa eu não quero mais sexo, perdi tudo, todo o desejo [...]”.

 “[...] depois do que ele fez na cama comigo eu não tenho vontade de sexo, [...]”

“[...] não consigo achar um homem bonito, se olho um homem não sinto nada [...]”

            A violência na família em muitos casos associa-se com perversão sexual que etiologicamente denuncia a impotência genital e social do ofensor.

e) delírio de ciúmes

            30% relataram controle e ciúme exagerado pelo parceiro:

“Ele começou a beber o dobro depois que eu quis separar [...]”

 “Ele tinha ciúmes até do próprio filho dele [...]”

            O delírio de ciúmes já descrito na psicose alcoólica indica homossexualismo severamente recalcado, projetado na parceira, dando suporte para ações violentas.

f) relações marcadas pela frieza e ausência

            40% apontam ausência de afeto e responsabilidade:

“[...] olha como os outros me tratam, bem melhor do que ele [...]

“Ele nunca teve tempo para a família [...]”

“[...] meu marido é o irresponsável da família

“E teu pai? [ ...] (chora) sei lá.  Era o homem que eu queria pra mim”!

            A angústia e a depressão acabam por indicar a síndrome do estresse pós-traumático.

g) filhos e exclusividade:

           Para 60% delas os filhos representam tudo em suas vidas:

“[...] meus filhos são muita coisa [...]”.

“[...] para meus filhos eu dou tudo, para o marido, nada”.

           A ruptura com o parceiro acaba levando a uma aliança com os filhos.

h)      ruindade, crueldade e bondade

           50% afirmam que os mesmos são maldosos e, paradoxalmente, 50% dizem que eles são pessoas boas:

“Ele é uma pessoa tão boa, mas tão ruim”.

“È uma pessoa racista preconceituosa, que choca muito, mas no fundo é uma pessoa muito, muito boa”.

            Uma percepção dissonante que se configura a partir da atribuição da causa da violência a um agente externo, álcool,drogas, família de origem, etc.

i) percepção de si e do próprio corpo

           60% não estão satisfeitas com seu corpo:

“[...] me acho gorda [...] tinha corpo, cabelo e pele bonitos. Depois que tive meu filho com 39 anos, piorou [...]”.

“[...] eu me acho horrível [...]”.

            A auto-estima negativa e a dependência estimulam a violência crônica e seu não rompimento.

j) medo e futuro incerto

            60% mencionaram preocupação com o futuro:

“[...] tenho medo [...] muito medo. Meu marido é autônomo, fuma, bebe, tenho medo por mim e pelas meninas [...]”.

“Fico assustada, pois não tenho segurança nem financeira, nem pessoal”.

            O medo e a ausência de projeto de futuro indicam a submissão e depresão.

k) reação e vingança

            40% relataram cenas e sentimentos de vingança e reação:

“[...] gostaria de ter nascido homem, [...]”.

“Uma vez, ele me deu um soco e em tacou longe numa festa, eu avancei nele e dei um soco nele [...]”.

“[...] agora eu sinto como se ele fosse um bicho, um animal, que não respeita a mulher [...]”.

            O sofrimento intenso leva a representação da vingança e da reação.

6. Considerações Finais

           Como conclusão pode-se afirmar que, há no grupo de mulheres investigadas uma representação paradoxal do masculino, “[...] ele é ruim, mas no fundo é bom [...]”, isso se ancora numa história com a figura paterna extremamente ambígua, “amados pela paternidade, odiados pela rigidez e crueldade”. Existem pais que agridem sistematicamente os filhos eleitos como suas vítimas sacrificiais, como “bodes expiatórios”, com o silêncio cúmplice da mãe.

           Diante de uma concepção cristã da existência essas mulheres produzem culpa intensa por odiarem figuras parentais; e num processo de auto-punição acabam reproduzindo o ciclo da violência, pais violentos e alcoólatras, acabam por eleger parceiros com as mesmas características. Uma representação catastrófica da existência ancorada numa auto-imagem negativa, “uma coisa ruim”, como se essa mulher sentisse que só “merece esse tipo de homem”. A agressão, o desrespeito, o sexo violento, levam ao recalque do desejo e a vivência de sentimentos de angústia, medo, depressão, hiperfagia, sentimento de inadequação e ideação suicida. A existência passa a ficar apoiada no cuidado dos filhos e a convivência com um indivíduo percebido como “animalizado”, baseado num poder cruel.

           Os sentimentos de vingança e retaliação pouco a pouco apontam para algum tipo de reação que vai da agressão física até a separação. A manutenção de relações adversas por longo período de tempo indica dependência econômica e psicológica. A atitude do homem violento para com a mulher está ancorada na representação de “mulher minha não trabalha fora”, impedindo o desenvolvimento intelectual e autonomia da mulher.  Esse feminino intensamente vitimizado, traumatizado e ameaçado de morte ou abandono recorre a delegacia da mulher em situação de desespero, como alternativa de sobrevivência.

           A prestação da queixa e a lavratura do boletim de ocorrência configuram um primeiro movimento em direção à ruptura. No entanto a instituição policial, através da delegacia não tem condições de suportar e apoiar suas vítimas em suas demandas seja por proteção policial contra a ameaça de morte, seja a vaga na casa abrigo para fugir da perseguição, levando a vítima ao abandono e desespero, legitimando- se a representação catastrófica da existência e sofrimento como predestinação de submissão diante de um poder animalizado, brutalizado e cruel.  

            Em nível das representações do fenômeno, a violência sofrida é significada como predestinação, como inevitável à existência, mesmo porque ancorada em uma história de vitimização, por parte de pai alcoólatra ou familiar, lembrada como situação recorrente, traumática e irreparável. No contexto de miséria e pobreza, a dependência psicológica e econômica diante do agressor é justificada em função de falta de iniciativa e coragem, das práticas de ameaça de morte; da impunidade jurídica e policial do agressor e da falta de estrutura dos órgãos públicos para abrigar e proteger mulheres ameaçadas de morte.

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According to datum of the Violence Observatory at Ribeirão Preto, São Paulo State, Brazil, in the period between 1995 and 2000, from the female complaints against partner abuse pressed at the Women`s Police Stations of the county designed to register such occurrences, 81.5% reported physical abuse; 4.47%, rape or sexual assault; 7.77%, life threatened; and 1.53%, seduction. The aim of this study is to understand the psychological and social features of the victims of the violence that takes place at their very homes, and the representations that are elaborated in order to stand and solve this critical situation. This study is based on the method, established by Moscovici, of social representations analysis, that investigates discourse practices of individuals, considering the historical and social context. The data collect was developed at a Women`s Police Station, located in a 500.000 inhabitants town, placed in the countryside of the State. In 2003, this Police Station registered 42.306 charges, an increase of 27.3% compared to the previous year. From this overall, 166 cases were interviewed, during the psychological support sessions offered by the staff of this research. From this sample, 57% of the charges were about intentionally-inflicted severe physical aggression; 12%, threats of death, abandonment or separation; 8%, rapes and rapes and sexual assault; and 8% included psychiatric cases of paranoid states. 15% of the victims of family violence are children and teenagers. Considering the representations of this phenomenon, violence is considered as something predestinated, and that cannot be changed. It can be explained by the past of violence reported by the victims (from an alcoholic father, for instance), perceived as traumatic, recurrent, and that cannot be compensated. Misery and poverty may establish in the victims a psychological and economical dependency on the aggressor. This dependency may also be justified by the lack of courage and initiative of the victims, the impunity of the aggressor, and the lack of resources of the public institutions to shelter and support the victims.



[1]Ph.D. Universidade de São Paulo at Ribeirão Preto, Brazil.

[2] Ms. Hokusei Gakuen University, Japan.

[3] MS Universidade de São Paulo at Ribeirão Preto, Brazil. Student researchers:  Tatiane L. Pereira, Louise H. Pires, Marina C. Berti, Paula Chiaretti, Camila G. Bahia.

[4] Ms USP